O assunto que trago, tenho certeza, não é estranho a vocês. Viver em nossos dias, ainda mais na cidade, tornou-se muito complicado. Os compromissos que consideramos absolutamente necessários, aumentam a cada dia e, quando percebemos, já estamos sobrecarregados de reuniões, corremos e nos cansamos para cumprir uma agenda viciada. Somos ocupados demais para sermos bons maridos para as nossas esposas, boas esposas para os nossos maridos, bons pais para os nossos filhos e bons amigos para os nossos amigos, e não temos tempo algum para ser amigos daqueles que não têm amigos. Afastando-se desses compromissos para passar algum tempo com a família, teremos um sentimento de irresponsabilidade que não nos deixará em paz. Tenho que me dedicar ao meu estudo ou dos filhos e até a cotação do dólar pesa sobre nós. A atualização profissional, as obrigações sociais e também o cuidado com o corpo, tudo enfim reivindica o nosso tempo. Além destas existem as crises próprias de mudanças (endereço, estado civil, comunidade,…).
Vivemos um tempo de muita instabilidade, transição e uma expectativa de respostas às profundas necessidades que surgem com as crises. O mundo parece estar desmoronando, o que parecia sustentá-lo, já não sustenta mais e no que acreditávamos, agora parece que não funciona mais. Vamos à luta. Freneticamente tentamos cumprir o mínimo aceitável de compromissos, mas vivemos cansados e sobrecarregados. Reconhecemos e lamentamos que a nossa vida está passando rápido demais e que damos tão pouco de gozo e paz à nossa própria alma. Os momentos de profundo silêncio do coração parecem tão difíceis e distantes. Com um sentimento de frustração e culpa, adiamos para amanhã aquela vida mais profunda de intimidade inabalável com Deus (onde sabemos que está o nosso verdadeiro lar) porque “hoje, não tenho tempo”.
Até aqui, nenhuma novidade. E, mesmo que gostemos de ter piedade de nós mesmos, não devemos ficar lamentando a pobreza causada em nossa vida pela avalanche de oportunidades. Nem adianta nos agarrarmos desesperadamente a uma solução, para termos o sentimento de que pelo menos hoje, tenhamos algum progresso para mostrar. Tomando a árvore como exemplo, é preciso podá-la para que dê bons frutos, mas não antes de examinar a terra onde está plantada e que a alimenta. Ademais, considerando que Cristo enxertou nova vida em nós, a poda vai significar eliminar os brotos ou galhos ladrões da velha vida que insistem em nos sufocar.
Mas, será que a culpa da complexidade das nossas vidas é de fato do mundo? É isso que dizemos. Dizemos que, por exemplo, a televisão e a internet nos oferecem mais estímulos por hora do que nossos avós tinham por semana. Essa situação nos faz às vezes desejar morar numa isolada e distante casa de campo, onde a vida é tranqüila e calma como no tempo dos nossos avós. Até novelas e propagandas nos estimulam para a fuga da cidade. Agora, sejamos sinceros, nós já tivemos oportunidade de estar na tal casa de campo, ou poderia ser de uma praia deserta, ou até num retiro de fato isolado e acontece que para lá carregamos uma parafernália eletrônica de som ou imagem que apenas transferem de lugar o barulho nosso de cada dia. E, se assim não for, sofremos muito, pois não sabemos o que fazer naquele ambiente simples demais. Os irmãos que moram na zona rural também poder-se-ão dizer tensos. Achar descanso não é só uma questão de buscar um lugar a parte, mas sim de encontrar a companhia adequada. Jesus Cristo.
Nós até pensamos que a complexidade está na sociedade em que vivemos. Na verdade, não somos acostumados a olhar para nós mesmos, onde estão as verdadeiras raízes dos nossos problemas. Sim, é no nosso interior que está o problema. São muitas e diferentes as ambições que lutam dentro de nós e que se refletem numa vida exterior cheia de distrações. Das muitas vozes, dentro de nós, uma das mais fortes é da situação em si. O coração se endurece quando deixamos que as circunstâncias determinem como iremos reagir, foi o que já aconteceu com o povo de Israel ao sair do Egito (Hb 3.7-10), tiraram o foco de Deus e assim, ficaram vagando sem rumo pelo deserto, sem chegar a lugar algum. Quando se perde o rumo ou o foco, vive-se continuamente vagando desorientado, indo de um lugar para outro, só para encontrar uma insatisfação atrás da outra. O que existe em nós é uma desarmonia interna, o corpo se manifesta desintegrado a partir da alma. Há um conflito em querer ser mais indivíduo, família, profissão ou igreja. São interesses diferentes e separados, cada um querendo falar mais alto, numa clara manifestação individualista. Para decidir o que fazer, diante do conflito apelamos para uma espécie de democracia que não integra, mas apenas olha para os votos, deixando muitas minorias descontentes. As reclamações continuam. Se decidirmos ajudar numa obra social, sentimos remorso por não poder também ensinar na igreja. É um constante clima de guerra.
E daí que somos angustiosos, receosos, tensos e oprimidos com medo de sermos superficiais. Ao mesmo tempo e constantemente escutamos um sussuro, um clamor por uma vida mais rica que estamos deixando escapar. Diante de um corre-corre louco, somos ainda incomodados por uma inquietação interior, que sugere um outro estilo de vida mais rico, sereno e profundo. O que fazer? Como descobrir o silêncio que é a fonte do som? Como o não assim como o sim podem ser ditos com confiança? Como integrar essas coisas? Há pessoas assim, integradas, tranqüilas no meio de decisões difíceis, vidas de paz. Carregam os mesmos pesados fardos, mas com alegria, sem irritação. Não é dos preguiçosos que estou falando. Também estes não são tão meditativos assim.
A cada um de nós Deus oferece uma vida de paz, serenidade, integração, confiança, simplicidade e tudo o que precisamos fazer, é aceitar. Todos nós já ouvimos falar do abismo que nos separa de Deus, daquele sussurro santo, o fôlego de vida. Ouvir e seguir esse sussurro produz intimidade e um espantoso equilíbrio de vida. No entanto, a nossa tendência é atendê-lo de vez em quando, não considerando-o como o que de mais precioso ha no mundo, não abandonando todas as outras coisas. Buscai pois em primeiro lugar o reino de Deus (Mt 6.33). Os sussurros de orientação, amor e presença de Deus são mais preciosos do que os milagres do céu e as coisas da terra. Podemos ser homens e mulheres guiados do céu, entregues completamente, sem reservas, àquela orientação e próximos do Centro da vida. Aí então, se ficamos sem casa ou terra, sem esperança no futuro, se renunciamos a tudo, em Deus temos raízes, somos da sua casa. Veja-se o que aconteceu com Jesus, foi da glória eterna para a vergonha e a morte. Ao aceitar as aflições deste mundo acabou se tornando o autor da salvação. E o seu sustento se baseava numa afirmação do Pai: “Tu és o meu filho amado”.
A nossa vida pode se tornar simplificada e não precisamos lutar e nos esforçar para alcançar esta simplicidade, basta render-nos. Se todos os nossos chocantes interesses internos se unirem num único e verdadeiro, o de andar humildemente na presença, orientação e vontade de Deus, não haverão as derrotas de minorias na tal democracia de que falamos antes. Haverá, isto sim, o silêncio solene do consenso.
Sob o olhar silencioso daquele que é Santo estamos todos nós, queiramos ou não. Pelo Eterno, que habita no fundo do nosso ser, os nossos programas, doações e tarefas realizadas estão sendo constantemente reavaliados. Não conseguíamos dizer não a eles, porque pareciam tão importantes. Mas se nos centrarmos e vivermos no silêncio que é preciosidade da vida, e levarmos a nossa agenda para os lugares íntimos do coração, com abertura total, prontos a fazer ou renunciar segundo a direção de Deus, muitas das coisas que fazemos atualmente perderão a sua importância.
Estamos falando com muita seriedade daquele que é mais precioso do que a vida. Será que nós realmente desejamos viver a sua vida? Cada momento na presença dEle? Nós suspiramos por Ele? Amamos a sua presença? Cada suspiro é uma oração, um louvor a Ele? Estamos decididos ser dEle, e somente dEle, andando a cada momento em santa obediência? Você já ouviu este tipo de apelo evangelístico. Pois é, o fogo do amor está queimando. Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento (Lc 10.27a). Amas??? A vida, o poder sereno, a duradoura paz de Deus, a paz do fundo de nossa alma, onde não há mais guerra e Deus já é vencedor sobre tudo, isso é para nós. É uma vida livre de ansiedade e pressa, porque algo da paciência universal de Deus nos é dado. As nossas vidas serão inabaláveis se estivermos plantados bem na rocha, enraizados e arraigados no amor de Deus.
Tudo isto é para nós. Uma das tentações é a de abandonar a fé. Até oramos, mas sai tudo errado com a gente e então trocamos a esperança pelo cinismo. Por isso Hebreus 3.14 nos motiva a “nos apegarmos até o fim à confiança que tivemos no princípio” e a que “prestemos maior atenção ao que temos ouvido, para que jamais nos desviemos”(Hb 2.1). Mas se você disser que não tem tempo para descer ao silêncio recriador, então a resposta será: Você realmente não quer, você ainda não ama a Deus com todo o seu coração, alma, força e mente sobre todas as outras coisas. Porque na exceção feita em tempos de doença, quando os filhos são pequenos, quando estamos sob grande pressão, aí descobrimos tempo para aquilo que realmente queremos fazer.
É drástico? Mas, para desmascarar qualquer fingimento na questão da devoção e do amor a Deus, é preciso ser impiedoso. É possível ter um dia cheio, e mesmo assim estar continuamente com Deus. Precisamos, sim, de um tranqüilo tempo de leitura e reflexão. Mas, podemos levar o silêncio recriador dentro de nós, quase o tempo todo. A hora do trabalho exigente não difere da hora de oração, na confusão da casa cheia de gente pedindo coisas ao mesmo tempo, podemos estar tranqüilamente com Deus como se estivéssemos no altar participando da sua ceia. Não é por falta de tempo que não me recolho em Deus. Na verdade em muitos de nós, é a falta do prazer entusiasta e do profundo amor ao Pai em todo o momento do dia e da noite.
Estamos falando de uma mudança radical no jeito de viver, um estilo de vida com Cristo, em Deus. A fé cristã não é mais uma tarefa para acrescentar no seu dia-a-dia, complicando ainda mais as coisas. A vida com Deus é o centro de tudo. Podemos ao Pai exclamar louvor, sussurros de oração, adoração e amor, que está dentro de nós.
Da comunhão com Deus, brota uma preocupação mundial. Não podemos reter o amor de Deus. Este amor transborda, nos aviva em todos os sentidos. Vamos querer ajudar as pessoas porque realmente as amamos e não porque temos pena delas e não será preciso esgotar-se nisto, porque é Deus quem vai estar operando em nós. Ele divide a sua preocupação total e nos dá a cada um a porção devida. Esta se torna a nossa tarefa. A vida com Cristo é uma vida dirigida do céu.
O comum em aceitar as muitas obrigações é devido a nossa incapacidade de dizer não. Vemos a urgência com que as coisas precisam ser feitas e não há ninguém para fazê-las. A decisão parte da cabeça e não do santuário da alma. Quando dizemos sim ou não nessa base, temos que dar razão, para nós mesmos. Nos desapegar de cargos, relações, posses, nos causa uma profunda sensação de vazio. Como seria abrir mão do “P.”? Somos tentados a nos agarrar naquilo que é o conhecido e seguro. Para um momento novo, assim como Jesus, é preciso morrer para alguma coisa. Para expectativas, ministérios, ambições, experiências, poder, etc. Mas, quando dizemos sim ou não pelo incentivo de Deus, ou na ausência do seu encorajamento, não temos razão e glória para dar a não ser para Deus. É viver sob a orientação divina. E Ele não nos quer vivendo num caos pessoal. Não precisamos trabalhar sozinhos, tentando terminar desesperadamente uma obra para ofertar a Deus.
A vida em Deus é simples e serena. Não ocupa tempo algum, mas ocupa o nosso tempo todo. Renova as nossas agendas. O evangelho traz esperança: há descanso, há esperança, porque Deus nos tem falado no Filho. Quem entra no descanso de Deus também descansa das suas obras, como Deus descansou das suas. (cfe. João 21.15-22, Hebreus 1.1-2 e 4.9-11a). E que assim seja!
Referência: Kelly, Thomas – A Testament of Devotion. Nova Iorque: Harper & Brothers, 1941.
Atiencia, Jorge – Pastorear e Ser Pastoreado. Curitiba: Encontro, 2000.