Realidade e verdade, por vezes, parecem se confundir. Porém, a experiência o demonstra que não são similares em sentido. A realidade contem elementos de verdade, mas não se circunscreve a ela. Eu até me arriscaria afirmar que a verdade transcende aos nossos sentidos. Isto é o que transparece, por exemplo, na pergunta que Pilatos fez a Jesus: “Que é a verdade?”, em reação à sua afirmação de que havia vindo a este mundo para testemunhar da verdade (João 18.37-38). Este assunto se encontra intimamente relacionado com outro, que vem me ocupando há tempos: o da santificação, uma vez que em oração Jesus pede por seus discípulos: “Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade.” (João 17.17).
Guardar a devida equidistância entre realidade e verdade é uma exigência da hora; corresponde a uma atitude de humildade. A realidade pode cegar, iludir; o que, no entanto, não é o mesmo que não enfrentá-la, envolver-se com ela. Não vivemos em bolhas. É preciso apenas que nos cinjamos “com o cinto da verdade” (Efésios 6.14), Jesus Cristo (João 14.6). Aqui entra o tema da santificação. Não há como enfrentar a realidade sem nos envolvermos com a santidade de nossa vida diante de Deus. E aí, em um primeiro momento, complica tudo. Esta é uma dimensão da vivência pessoal e da igreja que se encontra bem embaralhada. Nossos padrões de santidade, de correção, de certo e errado, estão todos em crise. Há uma sensação, meio generalizada, creio eu, de derrota na luta do bem contra o mal. Estamos bem distantes de brilhar “como estrelas no universo, retendo firmemente a palavra da vida.” (Filipenses 2.15-16).
Perdemos a batalha da vida boa e justa, proposta pelos modelos modernos do cumprimento individual do dever. E, agora, enfrentar os impasses que se nos apresentam, parece bem mais complicado. Digo isto em relação a tudo que nos inquieta: justiça, equidade, liberdade, comunicação que seja verdadeira e sem fingimento, viver a sexualidade de modo saudável, bom governo, sustento, família, filhos, trabalho, vida em sociedade e mesmo na comunhão da igreja. Entendemos até, com alguma resistência, de que nossa justificação é obra exclusiva de Deus, em Cristo: “não por obras, para que ninguém se glorie.” (Efésios 2.9). Aceitamos isto meio que por repetição e porque pertence à sã doutrina. Mas, quanto a santificação, dizer que ela também é obra exclusiva de Deus, ainda que com nossa participação ativa e obediente, aí já é demais.
A gente, há muito tempo, “rema” mais ou menos assim: ganhamos a salvação, a santificação agora é por minha conta, obra minha de gratidão. Mas como compreender as palavras do apóstolo Paulo: “Estou convencido de que aquele que começou boa obra em vocês, vai completá-la até o dia de Cristo Jesus” (Filipenses 1.6) e “…pois é Deus quem efetua em vocês tanto o querer quanto o realizar, de acordo com a boa vontade dele.” (Filipenses 2.13)? O tema aqui é provocativo! Eu o levanto para continuarmos a pensar nisto, diante de um quadro de realidade extremamente desafiador e difícil de ser enfrentado, com base no chamado divino para sermos santos. Encerro a reflexão com algumas frases impactantes do livro de William E. Hulme, “Dinâmica da Santificação”, que me vem acompanhando por onde ando, quando levanto e quando deito. “Quando uma pessoa não tem nenhum compromisso transcendente ao seu próprio eu, este eu se desintegra. Não pode suportar a responsabilidade de ser o seu próprio deus.” (p. 111-112). “Embora seja Deus quem santifica, ele opera através da função da vontade humana.” (p. 114). “O progresso na santificação pode ser algo para crer (fé), não para ver (visão). O caminho da santificação revela-se mais no momento crítico da derrota do que na progressão gradual.” (p. 117). “O ideal da justiça pode ser uma espécie de imagem do ego. O desejo de ser santo pode ser o desejo de pensar mais favoravelmente de si mesmo – essencialmente um desejo da carne. O evangelho, então, é um empecilho, porque realça o perdão, e o perdão é algo tal que uma pessoa mais se interessa em não precisar do que em receber. A imagem cobiçada da integridade talvez seja o meio da carne resistir à cruz – de evitar a sua própria crucificação.” (p. 117). “Aqueles que cobiçam a imagem da bondade procuram um traço característico de personalidade, e não a sua santificação. (p. 117).
P. Gerson J. Fischer.