Quantas não são as vezes em que a gente se põe a caminho de Emaús? Corpo cansado a produzir um passo pesado. Afinal, as “ocorrências destes últimos dias” não estão para uma fácil digestão e os verbos da esperança parecem fluir mais soltos quando conjugados no passado.
Pois um dia desses, Cléopas e seu amigo disseram um ao outro: “Vamos voltar para casa. Vamos a Emaús, pois por aqui parece que tudo se acabou para nós.”
Os acontecimentos dos últimos dias, em Jerusalém, haviam sido, além de intensos, desesperadores.
Eles mesmos se sentiam como que virados pelo avesso. O mestre deles havia sido morto já fazia três dias, e a instituição religiosa e política parecia cantar vitória uma vez mais. E sobre Jerusalém se levantava novamente o lamento que o próprio mestre havia entoado:
“Jerusalém, Jerusalém! Que matas os profetas e apedrejas ao que te foram enviados!…” (Mt 23.37a)
O lamento, porém, como que caía no vazio, na contramão da história. Pois Jerusalém cantava a vitória do status quo, da lei e da ordem, do controle e da força, da autoridade instituída e da interpretação teológica oficial, nessa verdadeira tentativa da domesticação de Deus.
Quanto a Cléopas e seu amigo, o mundo simplesmente havia ruído. As suas esperanças, primaveris como a vida, haviam achado o caminho do esgoto. Como eles mesmos dizem, num inconfundível tom depressivo:
“Nós esperávamos que fosse ele quem havia de redimir a Israel, mas, depois de tudo isto, é já este o terceiro dia desde que tais cousas sucederam”.
Eu, caneta à mão, paro por um momento. Ponho a mão na cabeça, pensativo. Será que eu não estou confundindo tudo nesta conversa que me pode levar a um nó só? Afinal, o que é que o relato de Lucas (Lc 24.13-34. Que tal ler o texto?) acerca destes dois discípulos que decidem ir a Emaús, tem a ver conosco neste país assustado e inseguro? Este, afinal, é o ano da morte do Senna e do nascimento do Real (1994). É o ano de eleições amplas e de uma campanha que ganha as ruas sem ganhar a atenção de um povo curtido pelo engano e pelo engodo.
Fazer a ponte entre a Emaús de ontem e esta Curitiba onde eu vivo hoje é complicado. Mas que a gente está profundamente revoltado e decepcionado com as nossas jerusaléns, isso está. Que as ocorrências destes últimos dias, como diz Cléopas, estão nos deixando com vontade de ir embora, isso estão. E que, por vezes, os verbos da esperança parecem negar-se a ser conjugados no presente e no futuro, isso também é verdade.
É por isso que a gente até nem parece estar tão distante destes dois andarilhos a caminho de Emaús. Afinal, parece que eles decidiram cuidar da sua vida, pois com Jerusalém não adiantava brigar. E a própria esperança de um novo tempo –tempo messiânico –havia murchado. O melhor caminho a seguir parecia ser aceitar este convite tão forte de ir para casa e cuidar da própria vida. Quantos de nós não temos passado exatamente por esta experiência. O Brasil, afinal, parece não ter jeito. O poço da crise econômica parece não ter fundo. Os políticos evangélicos não parecem ser diferentes dos outros e juntos eles montam os seus conluios. E, não por último, a nossa vida religiosa parece não querer mais brigar com Jerusalém e a gente parece querer se recolher para a intimidade da sobrevivência.
A gente até continua lendo a Bíblia, indo aos cultos e saudando os irmãos. Tudo isso, porém, constitui-se numa espécie de culto da saudade. Doces memórias da alma. Mas já não se briga mais com Jerusalém e já não se espera por mudanças que venham a alterar o status quo. A gente vai viver em Emaús, resignado com Jerusalém e com saudades do tempo da esperança.
Mas há, nesta história contada por Lucas um elemento diferenciador. Diz o texto que “o próprio Jesus se aproximou, e ia com eles”.
Jesus, com pinta de peregrino religioso voltando de Jerusalém, chega como quem não quer nada. Pergunta acerca das preocupações deles, dos acontecimentos em Jerusalém, e vai, desse jeito manso, chegando perto do coração deles. Num segundo momento, porém, Jesus assume a interpretação do texto e da realidade, da Bíblia e de Jerusalém. Será, pergunta Jesus, que não há outro jeito de ler o texto e interpretar as ocorrências destes últimos dias? Será que Deus não poderia estar atuando exatamente através destes acontecimentos que parecem ser tão estranhos e absurdos? Será que Deus não está escrevendo a sua história da salvação em meio a essa confusa história humana? Será que não é exatamente isso, que deveria acontecer, seus “néscios e tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram!”?
Mais tarde, já sentados na cozinha da casa em Emaús, Cleópas e o seu amigo começam a relembrar essa conversa teológica/histórica de Jesus e ambos se lembram de como o coração lhes ardia naquele momento de ouvir profundo. O tempo havia passado tão rápido, justamente porque estava marcado por uma caminhada tão profunda: Essa silenciosa chegada de Jesus, com perguntas tão pastorais… Esta sua reinterpretação da Escritura que fazia arder o coração… Esta sua liberdade de aceitar o convite para chegar na cozinha da casa deles para tomar um café… Este seu gesto tão sacramental de repartir o pão… Este seu desaparecimento instantâneo como que a selar uma reviravolta completa na cabeça, no coração e nos pés daqueles dois discípulos do caminho da cruz… Mas agora é preciso voltar a Jerusalém justamente e também porque agora se sabe que Jerusalém não tem a última palavra!
Sacerdotes e autoridades, calai! Discípulos, acreditai! Passos cansados, revigorai! Coração deprimido, desperta! Que se processe uma nova leitura da Bíblia e se reconjugue o verbo da esperança, pois, o Senhor ressuscitou:
Então os dois contaram o que lhes acontecera no caminho e como fora por eles reconhecido no partir do pão.
Até se pode entender que há na vida e na história momentos em que se quer voltar a Emaús. E Jesus até caminha conosco este pedaço da nossa jornada de vida. Mas, definitivamente, é preciso voltar a Jerusalém, pois é lá que se precisa contar a história que faz a diferença: Jesus vive! E esta diferença é tanto pessoal como política.
É a diferença que nos coloca de pé no caminho da vida. É a diferença que anuncia e denuncia que Jerusalém, com seus religiosos e seus políticos não tem a última palavra. Que Jerusalém precisa saber que, quando Deus fala, há esperança para os cansados a caminho de Emaús –e Jerusalém precisa calar, por mais que murmure.
Voltemos pois, a Jerusalém, para contar esta história que nos alimenta com o pão de cada dia e nos faz reconjugar os verbos da esperança. Você me permite caminhar com você?
Publicado originalmente na Revista Ultimato.